Rotary Club de Castelo Branco


Trabalho do Companheiro Dias de Carvalho, apresentado no jantar do 29º Aniversário do clube, sobre a vida e obra do Dr. José Lopes Dias, 1º Presidente do Rotary Clube de Castelo Branco.

JOSÉ LOPES DIAS  - ALGUNS DADOS

Lopes Dias é como uma jóia. Quanto mais tempo passa maior é e seu valor





     Na nossa região vivia-se, ainda, em plena era agrária. Tanto o modo de vida das pessoas como a sua actividade eram ditadas por uma rede apertada de obrigações baseadas nos costumes, nas tradições e em normas estritas. Esta vivência, “vigiada” pelas autoridades locais, criava dependência  social e económica que  impunha crenças, códigos de conduta e hábitos de vida. A grande maioria da população era carente das comodidades mínimas de habitação, vestuário e alimentação. Vegetava.
    Todo este ambiente cerceava o espírito de iniciativa, a mobilidade e a própria liberdade das pessoas.

  
O ensino não era estimulado. O que  torna um país rico é uma população evoluída, mas o ensino era encarado como um risco para o Poder. Este receava que a instrução lhe fizesse  perder alguma influência. O próprio Salazar dizia, nos seus discursos, que ao português bastava ter conhecimentos da leitura, escrita e das contas.
    Procurava manter-se o culto do amo e do senhor, tentando a continuidade de um certo feudalismo.
    A ignorância perpetuava, assim, o ciclo de marginalização.

    A industrialização que emergia na Europa contribuía decididamente para alterar, em muito, a vida dos camponeses. Na nossa região e em muitas outras do nosso país ela não surgia. A resposta foi a emigração. Creio que esta teve para as nossas populações  as mesmas consequências que a industrialização teve para as outras.

     Foi neste ambiente histórico que em 5 de Maio de 1900 nasceu,  em Vale de Lobos, hoje Vale da Senhora da Póvoa,  José Lopes Dias ou  José Lopes Dias Júnior  primogénito de José Lopes Dias casado, em segundas núpcias, com Carlota Leitão Barreiros Dias. Teve 4 irmãos: Jaime filho da primeiro casamento, António, Joaquim e Victor filhos do segundo casamento.
   O pai era professor do Ensino Primário e a mãe dedicava-se à casa e aos filhos.
   Cursou o ensino liceal em Castelo Branco e Coimbra onde terminou o curso de medicina em 1923.

     Casou em 6 de Setembro de 1926 com Maria do Carmo Pissarra Xavier tendo tido dois filhos: José e António. Exerceu a medicina em Penamacor, fixando-se em Castelo Branco em 1928 onde continuou a exerce-lâ com igual   mestria. Em Setembro do mesmo ano foi admitido como médico da Misericórdia tendo sido seu  Director Clínico por vários anos.

     José Lopes Dias foi um homem apaixonado pelo ensino, educação, saúde, investigação, regionalismo, bem como pela  sua região.
     Espírito de cientista, artista e humanista,  soube aliar à sua actividade prática de médico, um laborioso trabalho de investigação.
     Dedicou-se aos mais variados estudos sobre a ciência médica, história da medicina e, ainda, a um memorialismo literário digno de nota. Os seus ensaios, publicados em revistas várias, foram muitos deles organizados em separatas, como por exemplo:

Alguns Aspectos Sanitários de um distrito rural”(1948), separata do Boletim do Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge;

 Alguns aspectos da função médico escolar na Universidade, nos Liceus e nas Escolas Primárias” (1941), separata da revista Clínica, Higiene e Hidrologia;

 Elementos de História da Protecção aos Estudantes no Século XVI. A confraria de caridade dos estudantes” (1942), separata do Boletim da Direcção Geral de Saúde Escolar;

 As Misericórdias e Hospitais da Beira Baixa” (1938),  separata também de Clínica, Higiene e Hidrologia; “Albergarias da Beira Baixa” (1946), separata da Acção Médica;

Cartas  de Consolação do Cardeal de Alpedrinha ao Rei D. João II, à Rainha D. Leonor e à Princesa-viúva, D. Isabel, no falecimento do Príncipe D. Afonso”, separata de Acção Médica (1959);

Dois documentos inéditos sobre o poeta João Roiz de Castel-Branco” (Coimbra, 1957);

     Vários estudos sobre João Rodrigues de Castelo Branco, sua obra e biografia, especialmente a organização e prefácio do livro intitulado Homenagem ao Doutor João Rodrigues de Castelo Branco (Amato Lusitano ). Neste livro reuniu importantes trabalhos, alguns dos quais  publicados no estrangeiro que foram devidamente traduzidos para português. Termina o livro com a Compilação Bibliográfica do homenageado. Acrescentamos ainda os muitos artigos publicados na revista Estudos de Castelo Branco, de que José Lopes Dias foi fundador e director, além de comunicações em colóquios e congressos a nível nacional e internacional, que seria fastidioso enumerar, mas (para quem se interesse), foram coordenados, em  sua homenagem, em edição do Departamento de Extensão Cultural da Biblioteca Municipal de Castelo Branco, em 1990.

     O  seu cunho regionalista está  bem expresso na fundação da  Acção Regional, semanário, cujo primeiro número saiu a 11 de Novembro de 1924, encontrando-se  o ilustre homenageado entre os seus muitos fundadores. Suspenso em 1928, o semanário reapareceu com  nova direcção. José Lopes Dias é o seu redactor principal, João Matilde Xavier Lobo, director e editor.  Este semanário tinha como finalidade “pregar a união de todos os albicastrenses na defesa das aspirações comuns”, escreveu Mourato Grave, secretário de redacção. Vem a propósito referir que a Farmácia Grave era o cenáculo cultural de então . Ali se reunia, além de José Lopes Dias,  João Matilde Xavier Lobo, Reitor do Liceu, Mourato Grave, proprietário da farmácia, Diogo Correia, advogado, José Sena Esteves, José de Sousa Vieira, entre outros.

     Em 1929 contribui para a    organização do IV Congresso e Exposição Regional das Beiras, que contou com a presença do Chefe do Estado. Consagra-se então  definitivamente o movimento regionalista, iniciado anos antes e que o nosso homenageado serviu com a maior dedicação. Com efeito, o regionalismo é uma das  características  que sobressai na maior parte da sua obra, bem como na de seu irmão Jaime Lopes Dias.

     José Lopes Dias, homem do seu tempo, foi observador atento da conturbada situação política que se seguiu à implantação da República e em Coimbra, onde terminou o curso em 1923, foi, certamente, testemunha  interessada em todo este processo político. Frequentou depois os Hospitais de  Paris e aí residia em 1924, quando a III República  Francesa  se debatia com enormes contradições internas e dificuldades financeiras.

     A esta vivência política de Coimbra e Paris juntou-se a experiência do seu trabalho como médico, em Penamacor e Castelo Branco. Assim desenvolve o seu ideal republicano através de um humanismo que orientou toda a sua actividade com  preocupações  sociais , de ensino e educação, dedicando-se simultaneamente às  actividades de - historiografia e memorialismo - contribuindo para o desenvolvimento cultural e social de Castelo Branco e da respectiva região, pela via do Regionalismo, então muito em voga.

     Mas a sua obra, embora com forte cunho regionalista, não se encerrou nestas fronteiras. Integra-se também no  nacionalismo coincidente com o de várias tendências sócio-literárias e mesmo políticas, que vinham já do final do séc. XIX  com a comemoração do Centenário de Camões e se acentuaram com o choque sofrido pelos portugueses, sem distinção de classes ou partidos, aquando do Ultimato inglês de 1890, que nos impôs  a perda das terras do “mapa cor-de-rosa,” que ligavam Angola a Moçambique. Talvez tenha sido  este o acontecimento que mais contribuiu para a proclamação da República, vinte anos depois. Desencadeou, entre os portugueses, grande sentimento de patriotismo, de que andávamos muito arredados, pois mesmo os intelectuais de então, estavam mais preocupados em imitar os ventos vindos da Europa, sobretudo de França.

     Debruçando-nos, assim, sobre a ideologia que marca a obra de José Lopes Dias, pensamos poder integrá-la, em grande parte, na da “Renascença Portuguesa”, - associação cultural, formada em 1912, de que fizeram parte grandes intelectuais como Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes, João de Barros, Afonso Lopes Vieira, António Sérgio, Raúl Proença, António Correia de Oliveira, Augusto Casimiro, entre outros -. Este grupo volta-se para o passado procurando nele as fontes autênticas da nacionalidade, a inspiração para um futuro renovado, onde os portugueses seriam educados com os seus valores e características, sem desprezar, contudo, toda a evolução técnico-científica que então se vivia na Europa, porém,  sem se desaculturarem.

     A “Renascença Portuguesa” tem como objectivo levar a cabo um programa de educação e cultura  com base iminentemente nacional. É criada, na cidade do Porto, uma Universidade Popular onde são ministrados vários cursos. Organizados concertos e outras actividades destinadas à educação e formação de adultos.

     É da cisão deste grupo que em 1921 nasce a revista Seara Nova, levada a cabo por António Sérgio, Jaime Cortesão e Raúl Proença, revista de índole fundamentalmente doutrinária.  Promove campanhas de doutrinação e de defesa da democracia, visa a formação de um escol cultural capaz da reforma das mentalidades. José Lopes Dias colaborou nesta revista e foi, seguramente, um dos seus fiéis leitores.

     Jaime Cortesão, médico,(actividade que pouco exerceu)  foi um republicano convicto e mestre de muitos dos intelectuais do seu tempo. Foi um dos mais altos valores da historiografia portuguesa moderna. Também Lopes Dias não deixou de expressar a admiração que sentia por ele, aspecto que, certamente, muito influenciou a sua  obra. Com efeito ve-mo-lo a promover, na linha de Cortesão, uma abrangente protecção à  criança, sua educação, ao mesmo tempo que se dedicava  à historiografia, nas horas livres, como já frisámos.

     Num artigo publicado na revista Atlântida (nº11, Setembro de 1916), Jaime Cortesão afirmou  que para se fazer uma boa e bela obra de educação  pela história nacional, em que os sentidos e faculdades da criança, a sua pequena e inquieta vida se prendessem, “era necessário não só o talento e o tacto dum educador e dum artista, mas uma grande vontade e força de inovação, capazes de vencer a pantanosa e rotineira indiferença geral”. É esse talento e essa capacidade de inovação que caracterizam as realizações de Lopes Dias.

     Este dizia “a criança deve desenvolver harmoniosamente o seu corpo, a inteligência, a actividade, a criatividade e a sensibilidade”. Nesta linha impulsionou em Castelo Branco o funcionamento do Jardim Escola João de Deus e o Lactário contribuindo decididamente para a  melhoria da saúde materna infantil, pois é preciso começar por esta díada, tendo em vista a construção de um mundo melhor. O funcionamento destas estruturas revestiu-se de tal importância que reduziram  drasticamente a mortalidade infantil, na área de Castelo Branco.

     Fundou a Escola de Enfermagem ,que hoje tem o seu nome, pois sentia bem quanto era necessário ensinar, educar e dispor de técnicos para esta grande obra que consistia simultaneamente elevar o nível de saúde das populações e tratar os doentes.

     Passou da clínica essencialmente curativa para a preventiva ocupando o lugar de Delegado de Saúde. A Saúde Publica fascinava-o pois sentia  profundamente quanto havia a fazer na  prevenção das doenças, educação para a saúde, vigilância, erradicação das doenças sociais e, volto a referir, na Saúde Materno Infantil. Com os meios disponíveis combate os doenças, então endémicas e graves, como Trascoma,Varíola,Febre Tifóide,  Bócio que encontrámos na grande  maioria da população de três concelhos do nosso distrito, para além de muitas outras que seria fastidioso enumerar. Para terem uma noção de quanto era difícil, por vezes, realizar informo que o Poder Político de então demorou cinco anos a tomar a decisão, extremamente simples, de administrar sal iodado, nas zonas endémicas do Bócio.

     Tinha plena  consciência de que bons quadros de Saúde Pública e  também de Serviço Social são indispensáveis ao êxito do desenvolvimento humano. Basta ler duas das conferências - “Ao Redor do Serviço Social”- que proferiu na Covilhã e em Castelo Branco, em 1932. Na primeira, a convite  dos operários que formaram, naquela cidade a Associação Mutualista, traça um largo panorama do que entende por Assistência Social e das tarefas que lhe cabem. São tantas e tão vastas que, citação sua “cada um de nós deve atribuir-se uma função a desempenhar em seu benefício  e que o primeiro esforço a realizar deve ser, incontestavelmente, no sentido da instrução e da educação, pois é por seu intermédio que os homens se aproximam, destruindo as barreiras e apagando as distância que os separam”. Incentiva a assistência a levar por diante a  sua Associação Mutualista.  Estão no caminho certo, afirma, pois compreenderam as vantagens associativas. Realizaram a parábola dos vimes, citação sua “aqueles vimes frágeis que um pai pediu a seus filhos, a fim de lhes demonstrar que não valendo nada um a um, se reunidos todos seriam inquebrantáveis, invencíveis...”

     Da mesma forma, a conferência proferida em Castelo Branco numa festa de Caridade em benefício do Instituto do Cancro e realizada no Cine-Teatro, é reveladora, através da sua ideologia e cultura, do grande homem que foi José Lopes Dias. Começa pela afirmação de esperança: “Estamos no século da Assistência...” Traça depois alguns apontamentos históricos sobre a forma como a Assistência foi praticada através dos tempos, enfatizando o papel que nela desempenharam as Ordens Religiosas. Após  considerações várias sobre a Assistência e da necessidade de acolher e cuidar dos tuberculosos, enumera descrevendo todos os estabelecimentos de Assistência que em Portugal considera modelares, e uma vez mais, refere os Jardins Escola João de Deus, preconizados também pelos intelectuais da “Renascença Portuguesa”.

     Esclarece ainda que, ao lado do aspecto humanitário e sentimental e a par dos sentimentos generosos e de solidariedade humana, a assistência tem o seu lado económico e material, uma vez que o homem representa também um capital produtivo que conta na riqueza do país e que é preciso valorizar. Nessa medida, sublinha, mais uma vez, a importância  do desenvolvimento da criança.. Por fim, faz algumas considerações sobre o cancro e o desconhecimento de suas causas.  Acrescenta algumas normas de higiene corporal e alimentar que devem ser observadas, termina com um apelo à boa vontade dos seus ouvintes a fim de colaborarem com generosidade no movimento de alcance social que é o combate ao cancro.

     Lopes Dias sentia bem que a riqueza de um país depende de uma população evoluída ao nível da cultura,  ensino, educação,  saúde, desenvolvimento social e económico. Assim as preocupações nestas áreas são uma das características que atravessavam totalmente a sua personalidade.

     É na continuação do seu modo de  pensar e  de toda a actividade anteriormente realizada, que no final da era de 60, entrega ao Primeiro Ministro de então, Prof. Marcelo Caetano, quando da visita a esta cidade, um relatório defendendo a criação de uma Faculdade de Medicina em  Castelo Branco. Neste pedido integra-se: Ensino, Educação,   Saúde e algum regionalismo, princípios que ditaram o seu modo de estar na vida.

     Personalidade exuberante, com certo  fascínio e espírito agudo, soube viver dignamente a sua vida. Homem de ideal e de realizações, soube imprimir a  toda a obra o seu cunho social e cultural, a par duma gentileza e dum trato excepcionalmente fino.

     Os princípios defendidos e praticados por José Lopes Dias são considerados, na vida moderna, alicerces indiscutíveis do desenvolvimento.

     Sentiu bem que o amanhã se organiza hoje.

                                                                                 Fernando Dias de Carvalho, 2000